

Kunda Dixit, do Nepali Times, compartilha o trabalho por trás de seus livros de fotografia sobre a guerra civil do Nepal. Foto: Heino Ollin para GIJN
‘Reescrevendo a história’: dicas para investigar eventos anos, décadas ou séculos depois
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O jornalismo é por vezes definido como a “história narrada às pressas”. O antigo presidente e editor do Washington Post, Philip L. Graham, rotulou a reportagem como “o primeiro rascunho da história”.
Os historiadores sempre utilizaram documentos de arquivo, incluindo jornais antigos, para compreender o que aconteceu anos, décadas ou mesmo séculos atrás. Mas, por vezes, funciona ao contrário: são os jornalistas que investigam o passado e divulgam fatos, eventos, arquivos ou testemunhos anteriormente desconhecidos que são grandes o suficiente para “reescrever a história”. Ou, pelo menos, lançar uma luz diferente sobre o que pensamos saber sobre um acontecimento ou pessoas.
Durante uma sessão dedicada ao tema na 13ª Conferência Global de Jornalismo Investigativo (#GIJC23), três jornalistas compartilharam suas dicas após investigarem eventos históricos. Os painelistas incluíram José María Irujo, editor-chefe de investigação do El País, que seguiu o rasto dos terroristas da era Franco desde Espanha até à América Latina e revelou uma história chocante que muitos na Espanha gostariam de ter esquecido; a correspondente Catherine Porter e a sua equipe do The New York Times, que revelaram a preocupante história de como a França infligiu reparações devastadoras ao Haiti há mais de dois séculos, o que ainda coloca o país com os mais elevados níveis de pobreza no Hemisfério Ocidental; e Kunda Dixit, editor do Nepali Times, que detalhou o trabalho por trás da sua trilogia de livros fotográficos, revelando toda a extensão da sangrenta guerra civil do Nepal e a reação que recebeu dos nepaleses em todo o país.
Siga seus instintos
Em 2013, quando José Maria Irujo e seu colega, o jornalista investigativo do El País Joaquín Gil, começaram a investigar uma série de crimes cometidos na Espanha após a morte do ditador General Francisco Franco em 1975, nenhum editor havia lhes atribuído a história. Os casos haviam sido esquecidos ou encerrados pelas autoridades espanholas e nenhum meio de comunicação demonstrou interesse em investigar mais. “A investigação não era a prioridade do nosso jornal, era a prioridade de dois jornalistas que queriam que os culpados fossem responsabilizados”, explicou Irujo no GIJC23.
Trabalhar por conta própria os livrou de expectativas elevadas. “Não tivemos pressão porque não contamos aos nossos chefes. Você precisa de tranquilidade para fazer esse tipo de investigação maluca”, disse ele. Embora essa exposição inovadora tenha eventualmente se tornado uma matéria de primeira página e uma das reportagens mais lidas do El País, a dupla nunca conseguiu concentrar-se exclusivamente nela. “Estávamos trabalhando em outras histórias ao mesmo tempo”, explicou Irujo.
Perguntas simples sem respostas podem ser um começo
“O projeto ‘Resgate’ do Haiti do New York Times não deveria ser uma investigação”, disse Catherine Porter durante a sessão na GIJC23. “A ideia começou quando meu chefe me perguntou, após o devastador terremoto de 2021 no país, por que o Haiti sofre com tantos problemas sistêmicos.” Quando ela tentou descobrir quanto o país tinha pago em dívida nos últimos dois séculos, a quem e quando os pagamentos terminaram, não conseguiu encontrar respostas claras. Foi assim que a investigação de um ano começou, enquanto ela tentava desvendar – graças a historiadores, arquivos e livros – o montante e as consequências do enorme “resgate” pago pelos haitianos à França pela sua liberdade. O Haiti efetuou oficialmente os seus últimos pagamentos da dívida em 1888, mas o The New York Times descobriu que os pagamentos relacionados com a dívida do Haiti continuaram, na verdade, até 1957.
Explore os arquivos

Catherine Porter (à esquerda) do The New York Times e José María Irujo, editor-chefe de investigação do El País. Imagem: Heino Ollin para GIJN
Para investigar acontecimentos do passado, Irujo aconselhou “ter clareza sobre o seu objetivo” e “saber o que procurar”. Ele e seu colega aproveitaram ao máximo os recursos disponíveis no El País. “Nosso jornal tem um arquivo muito grande”, explicou. Revendo o El País e outros jornais das décadas de 1970 e 1980, e examinando milhares e milhares de pastas, ele e seu parceiro de reportagem conseguiram encontrar os nomes por trás dos ataques terroristas de direita. Foi assim que conseguiram montar uma lista de fugitivos para rastrear na América Latina.Seja organizado
“Para qualquer investigação que dure mais de um ano e envolva muitos documentos e dados usados por vários jornalistas que trabalham distantes uns dos outros em países diferentes, é necessária organização”, observou Porter. Em vez de usar uma planilha Excel, ela recomenda fortemente o uso do software de projeto Workflowy. Grupos de WhatsApp, pastas compartilhadas do Google Drive e reuniões regulares também foram úteis para sua equipe. “Quando você faz uma pesquisa, você pensa: ‘Claro, vou lembrar disso’ e então, um ano depois, você não lembra. Quando você está escrevendo, qualquer detalhe pode ser significativo”, disse ela. O processo de reportagem deve, acima de tudo, ter “disciplina”, enfatizou.
Historiadores, ‘viciados’ em patrimônio e colecionadores são seus melhores amigos
Ao investigar eventos históricos, você deve reconhecer que muitas pessoas podem ter trabalhado no mesmo assunto antes de você. Aproveite isso. “Os historiadores foram maravilhosos em termos de oferecer os seus próprios arquivos, as suas próprias imagens de arquivos, com quem mais deveríamos falar e outras fontes em termos de livros”, disse Porter. “Esses ‘viciados’, que são basicamente jornalistas não remunerados fascinados pela história, têm muitas coisas.”
Ela explicou que a contribuição de uma dessas fontes foi decisiva em sua investigação no Haiti. “Ele nos deu o relato inicial, datado de 1825, do Barão de Mackau, que foi enviado pelo rei da França, Carlos X, para entregar o ultimato ao governo haitiano”, lembrou ela. Se o Haiti não tivesse aceitado os termos do rei – pagar à França 150 milhões de francos e uma enorme redução nos impostos alfandegários sobre os produtos franceses – o barão tinha ordens de declarar o Haiti um “inimigo da França” e bloquear os seus portos.
Não se esqueça do lado humano
Ao trabalhar com história, você pode querer se concentrar em fatos e eventos. No entanto, todos os oradores da sessão GIJC23 sublinharam a necessidade de abrir espaço na sua história para as pessoas: vítimas, sobreviventes, familiares e descendentes. Eles não apenas podem trazer dicas e informações, mas certamente contribuirão para mostrar o impacto humano de sua investigação.
“Foi importante conversar com advogados e familiares das vítimas dos ataques terroristas porque eles queriam nos ajudar. O mesmo acontece com os ex-policiais que investigaram os casos”, disse Irujo. E ficar de olho na família e nos amigos dos criminosos, nas redes sociais, por exemplo, às vezes era útil como forma de rastrear conexões com o sujeito.
Viajar para a América Latina para obter provas em primeira mão de onde viviam os terroristas foi uma forma de responsabilizá-los. “Fomos apenas quando tivemos certeza de encontrá-los”, disse Irujo. “Somos uma equipe muito pequena, então não havia desculpa para gastar dinheiro em uma viagem estúpida à toa.” Ao fazer isso, eles conseguiram obter fotos reais de criminosos cujos rostos não eram vistos nos jornais há décadas.
Blinde sua história
Verificar os fatos das investigações é crucial, mas é ainda mais importante na reportagem histórica. Quanto mais longe no passado estiverem os fatos e testemunhos em sua história, mais cauteloso você deverá ser antes de aceitá-los como confiáveis. “É melhor você acertar”, alertou Porter. “Para o projeto de resgate, cada fato teve fontes duplas e verificamos tudo duas vezes.” Como o Times investiu pesadamente no projeto, a história foi verificada por nada menos que 16 historiadores. Além disso, 20 pessoas analisaram o cálculo financeiro do resgate, que era o cerne da história. Por último, mas não menos importante, uma das etapas finais do trabalho foi, na verdade, um retorno aos especialistas para “blindar tudo”.
Seja notado
Você deseja que essas investigações históricas de longa duração sejam lidas pelo maior número de pessoas possível. É por isso que Irujo disse que a história deles foi publicada em três formatos diferentes: no jornal, no site do jornal com um vídeo incluindo conversas telefônicas com os assassinos e como parte de um documentário especial em vídeo de 15 minutos.
A enorme investigação de Porter sobre o Haiti foi tão longa que poderia basicamente ter sido um livro, disse ela. Ao final, foi publicado em quatro partes e incluiu também documentos históricos e pinturas, uma bibliografia, além de fotos do Haiti de hoje. Para evitar afastar os leitores que não estavam dispostos a ler o artigo inteiro, o The Times também criou um artigo resumindo as principais conclusões. E para ter ainda mais alcance, a investigação também foi traduzida para o francês e uma edição gratuita em crioulo haitiano para que os haitianos pudessem lê-la.
Assista ao vídeo completo do painel da GIJC23 abaixo.