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An aerial view of the border between virgin forest and agricultural land. Image: Courtesy of Fernando Martinho
An aerial view of the border between virgin forest and agricultural land. Image: Courtesy of Fernando Martinho

Uma vista aérea mostrando como as terras agrícolas estão invadindo a floresta no Brasil, com queimadas ilegais ao fundo. Imagem: Cortesia de Fernando Martinho

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Investigando ‘lavagem de gado’ e desmatamento na Amazônia: entrevista com o vencedor do Prêmio Goldman 2024

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Há anos, as florestas tropicais do Brasil estão sob ataque, com imagens de satélite mostrando as fronteiras da selva amazônica recuando de forma lenta, mas constante.

Em 2022, o país liderou a lista de desmatamento no mundo, segundo dados sobre a perda de florestas tropicais do Global Forest Watch, do World Resources Institute.

As motivações para converter florestas em campos são muitas, desde o garimpo até a construção de hidrelétricas, mas nenhuma é tão forte quanto abrir pasto para a criação de gado.

O Brasil também lidera outra lista, como o maior exportador mundial de carne bovina, responsável pela venda para mais de 150 países, de acordo com dados do governo. Só no ano passado, foram enviadas para o exterior cerca de 2,5 milhões de toneladas de carne bovina processada e in natura.

Mas, embora o elo entre a criação de gado e o desmatamento seja amplamente conhecido, especialmente entre os brasileiros, encontrar provas documentais – e rastrear a cadeia de abastecimento da origem até o consumidor – não é tão simples como parece.

Muitas vezes, os animais passam por diversas fazendas, em diferentes municípios e estados do país, antes de serem abatidos. É um processo chamado “lavagem de gado” e que torna praticamente impossível rastrear os animais.

Em uma investigação de vários anos, jornalistas da Repórter Brasilmembro da GIJN desde 2018 — trabalharam com pesquisadores de diversos países para documentar a cadeia de abastecimento desde o supermercado até os pastos onde o gado é criado, e usaram dados de multas ambientais e imagens de satélite das fazendas para rastrear a movimentação de gado e produtos bovinos no Brasil.

Isso acabou ajudando o veículo a revelar ligações entre redes de supermercados da Europa e dos Estados Unidos com frigoríficos brasileiros abastecidos por pecuaristas acusados ​​de desmatamento ilegal em diferentes biomas, como Amazônia, Cerrado e Pantanal.

Após a publicação da matéria em 2021, seis grandes grupos varejistas da Bélgica, França, Holanda e Reino Unido suspenderam a venda de produtos das empresas brasileiras em questão.

Marcel Gomes, secretário executivo da Repórter Brasil. Foto: Cortesia do Prêmio Ambiental Goldman

“Cerca de 65% do desmatamento na região amazônica é causado pela pecuária”, explicou Marcel Gomes, secretário executivo da Repórter Brasil e coordenador do projeto. “É nosso dever, no jornalismo, expor estes problemas, responsabilizar as autoridades e as empresas”.

O projeto rendeu a Gomes o Prêmio Ambiental Goldman 2024. Conhecido como o “Nobel do Ambientalismo”, Gomes é o primeiro jornalista brasileiro a ganhar o prêmio, que normalmente é concedido a ativistas e defensores ambientais.

As reportagens obstinadas da Repórter Brasil sobre temas como desmatamento, meio ambiente e direitos humanos, também renderam ao veículo uma série de prêmios e reconhecimentos, incluindo o Prêmio Gabriel García Márquez 2023 e uma indicação de finalista do Prêmio Javier Valdez, também em 2023.

Conversamos com Gomes para entender como o projeto foi realizado, as dicas e ferramentas que eles usaram para seguir a trilha do gado e os riscos de reportar sobre esse tema quando tantos milhões — e reputações — estão em jogo.

Marcel Gomes and colleagues at the Reporter Brasil office (Photo: Goldman Environmental Prize)

Marcel Gomes e colegas Natália Suzuki (à esquerda) e Tatiana Chang Waldman no escritório da Reporter Brasil. Foto: Cortesia do Prêmio Ambiental Goldman

GIJN: Seu projeto investigou as cadeias de abastecimento de carne e o desmatamento. Em geral, qual a importância da pecuária na cobertura ambiental?

Marcel Gomes: É muito importante porque é um setor que causa muito impacto. O setor é responsável pelo desmatamento na Amazônia, casos de trabalho análogo a escravidão e também é relevante na economia do país, tanto pela carne, já que somos o maior exportador, como também para a exportação de biodiesel, que é feita com gordura animal, e couro, desde vestuário ao automobilístico.

A nossa inovação foi tratar da questão considerando toda a cadeia produtiva. É uma cadeia muito longa: o boi nasce numa fazenda, desta fazenda ele vai para outra fazenda ser criado, depois para outra fazenda onde há o engordamento, muitas vezes passa por outras fazendas até chegar ao frigorífico. Isso significa que se perde uma coisa muito importante quando falamos em cadeia produtiva, que é a rastreabilidade. Você não sabe o caminho que esse animal fez ao longo da sua vida. Ao mesmo tempo você tem uma série de impactos sociais e ambientais ligados a essa cadeia. Sem rastreabilidade você dificilmente tem influência para melhorar a situação.

Essa investigação foi premiada porque a gente deu um passo além: a gente envolveu os supermercados. A gente contratou pesquisadores em vários países, inclusive aqui no Brasil, que iam aos supermercados fotografar o código de barras das embalagens. A gente alimentou essas informações em uma grande planilha que nos levou até os frigoríficos de origem dessas carnes brasileiras espalhadas pelo mundo.

GIJN: Sua equipe criou um software para rastrear a ‘rota da carne’. Como isso foi feito?

MG: Temos a Lei de Acesso à Informação (LAI) aqui no Brasil, desde 2011. Essa lei exige que os órgãos públicos digitalizem suas informações. Isso significa que você tem um volume enorme de informações, mas esses dados estão super desorganizados. Cada [dado] está em um servidor diferente, em uma linguagem diferente, organizado de formas e até em formatos diferentes: um está em PDF, outro em Word, outro em Excel.

A Repórter Brasil cria bancos de dados desde o início de sua formação. Em 2013, lançamos um banco de dados sobre a cadeia têxtil no Brasil, o Moda Livre, que mostrou os vínculos das empresas com o trabalho escravo e outras relações trabalhistas. Isso está disponível e atualizado periodicamente. O segredo é ter a capacidade de organizar [os dados] de uma forma que permita realizar pesquisas mais rápidas e identificar manchetes e histórias. Nossos parceiros têm acesso a esta base de dados para que possam acessar e buscar informações. Nosso banco de dados sobre gado é atualizado uma vez por ano para quem apoia a Repórter Brasil.

Vista aérea do confinamento de gado utilizado em fazendas na Amazônia. Foto: Cortesia de Fernando Martinho

GIJN: A reportagem teve um impacto econômico, pois as empresas pararam de comprar carne do Brasil. Vocês enfrentaram alguma retaliação?

MG: A metodologia que a Repórter Brasil usou foi ouvir todos os envolvidos. A gente teve um diálogo muito franco, tanto com setor de frigoríficos, quanto com os supermercadistas… [onde apresentamos] dados, provas e evidências.

Não sofremos nenhum tipo de pressão ou retaliação. O risco maior nesse tipo de investigação é com os pecuaristas… a gente tem alguns processos movidos por pecuaristas de outras reportagens.

Isso é uma dica que eu sempre dou: é fundamental ter uma boa equipe de profissionais do direito. É muito difícil fazer esse tipo de trabalho de maneira independente, sem a retaguarda de profissionais do direito, porque empresas no setor privado, ou mesmo políticos, te processam. Algumas de nossas publicações são avaliadas pelos advogados antes, como foi o caso desse material. É por isso que temos muita segurança quando publicamos materiais como esse. A gente acredita na justiça.

GIJN: Você acha que a cobertura ambiental traz um duplo risco: o assédio jurídico e o risco de campo?

MG: Se você fizer uma análise de risco tem muitas coisas envolvidas com uma viagem, com segurança em relação a criminosos ou a acidente, né? E depois você tem o risco de assédio legal, processos, ameaças. A gente tem uma política de segurança, um check-list de risco. É uma política de segurança muito chata, mas é fundamental para evitar tragédias. Recentemente, repórteres da RB foram detidos por policiais que tinham ligação com a milícia. A gente precisou mandar um advogado uma vez para libertar um dos nossos repórteres. Após a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, a gente ficou bastante tempo sem viajar. Aí fortalecemos nossa política de segurança, colocamos ainda mais critérios, que acabaram encarecendo ainda mais as viagens. Mas é necessário.

Assista abaixo Marcel Gomes discutir sua investigação sobre como a pecuária alimenta o desmatamento ilegal na Amazônia.

GIJN: Como você descreveria a Repórter Brasil?

MG: A Repórter Brasil é uma organização que foi criada quando ainda éramos alunos da faculdade de jornalismo da Universidade de São Paulo. A gente começou a discutir a possibilidade de criar um veículo que pudesse trabalhar com temas sociais e ambientais, assuntos que julgávamos que a grande imprensa não cobria adequadamente. A Repórter Brasil foi fundada em 2001 e é uma organização muito particular porque ela faz jornalismo e ao mesmo tempo é uma ONG. A gente tem um programa de pesquisa, um programa de educação e um programa de incidência política. Uma das estratégias que a gente tem é tentar potencializar o conteúdo jornalístico para que ele realmente cause impacto e transformação social. Então, quando a gente faz uma investigação, muitas vezes esse material é utilizado não só pelas outras áreas da Repórter Brasil, mas pelos nossos parceiros. Estamos produzindo atividade jornalística, mas ao mesmo tempo estamos lutando para que aquele conteúdo mude algo de forma real. A RB é vista como um outlet, não temos copyright, e fornecemos material para UOL, Folha de S. Paulo, e até The Guardian. Acho que é um modelo de organização bem interessante.

GIJN: Como esse modelo difere daquele das organizações de mídia tradicionais, e como isso ajuda vocês?

MG: Para nós, a questão ética é fundamental. Ainda que a Repórter Brasil esteja dentro de coalizões de organizações não governamentais e participando de conversas, o nosso programa de jornalismo é independente. O nosso conteúdo é nosso, produzido por nós e editado por nós. A gente faz questão de manter dessa forma, que é blindar o trabalho jornalístico para que ele seja independente. E por isso que a Repórter Brasil tem uma reputação excelente e consegue fornecer material para órgãos de imprensa tradicionais. As pautas são definidas a partir da cobertura que a gente faz, do olhar que a gente tem sobre os problemas: pensando nos direitos humanos, direitos trabalhistas e ambientais.


Juliana FaddulJuliana Faddul é jornalista freelancer e documentarista brasileira. Ela recebeu financiamento para sua reportagens do Earth Journalism Network, do Amazon Rainforest Journalism Fund em parceria com o Pulitzer Center e da Unesco. Também trabalhou como produtora de jornalismo na TV Globo e na CNN Brasil. Faddul está trabalhando atualmente em um documentário sobre desastres ambientais na América Latina.

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