Seleção do Editor: As melhores histórias investigativas em português de 2023
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Ser jornalista nunca foi uma tarefa fácil, porém o jornalismo na era da desinformação tem sido especialmente desafiador para os profissionais de países de língua portuguesa.
A eleição de um novo governo no Brasil trouxe esperança de uma trégua para os jornalistas do país, após quatro anos de antagonismo durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro. No entanto, o legado de um governo que todos os dias tentou desacreditar a imprensa será difícil de apagar: a desconfiança pública ainda é muito evidente, assim como a disseminação de informações falsas.
Por mais que o retorno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao cargo tenha redefinido a relação do governo com a imprensa, o país continua polarizado. E com raiva. Essa emoção crua culminou na ocupação dos prédios do governo federal, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, para protestar contra a derrota de Bolsonaro. Durante esta ocasião, vários profissionais da comunicação social foram atacados física e verbalmente.
Os repórteres brasileiros também são alvo constante de políticos, empresários e outras autoridades que tentam intimar a imprensa por meio de processos judiciais abusivos. Ocasionalmente, funciona e reportagens são censuradas e acabam sendo tiradas do ar. Mas também há casos muito mais sérios. Por exemplo, a jornalista brasileira Schirlei Alves foi recentemente condenada a um ano de prisão e a pagar US$ 80 mil por difamação, depois de publicar uma reportagem sobre a humilhação que uma influenciadora digital sofreu quando testemunhou em julgamento sobre ter sido vítima de estupro.
Do outro lado do Oceano Atlântico, em Portugal, grupos extremistas também representam uma ameaça para os jornalistas. Esse país, apesar de desfrutar de uma liberdade de imprensa robusta, viu a sua classificação de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras cair em comparação com 2022.
Em nosso processo de curadoria, consideramos histórias de Brasil, Portugal e Moçambique – inclusive uma reportagem interessante sobre casamento forçado de nosso membro moçambicano Mídia Lab – mas a lista final cobre a destruição da floresta amazônica brasileira, o abuso sexual em lugares que deveriam ser seguros e uma amostra das muitas investigações sobre o clã Bolsonaro desde o fim de seu governo.
Os diamantes importados de Bolsonaro (Brasil)
No ano seguinte à sua saída do cargo, Jair Bolsonaro foi alvo de inúmeras investigações. Entre as mais notáveis, está um caso revelado pelo jornal O Estado de São Paulo em março, que expôs que o governo Bolsonaro tentou trazer para o Brasil joias avaliadas em R$16,5 milhões sem pagar o imposto de importação. As joias, que haviam sido presenteadas à esposa de Bolsonaro, ex-primeira-dama do Brasil, foram encontradas na mochila de um assessor do presidente, que voltava de uma visita oficial à Arábia Saudita. Como não foram declaradas, as joias foram apreendidas pelas autoridades da Receita Federal no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Segundo a reportagem, foram oito tentativas frustradas de Bolsonaro de recuperar as pedras preciosas. Nas semanas seguintes, foi revelada a existência de mais dois conjuntos de joias, que passaram despercebidos pela alfândega e foram incorporados à “coleção pessoal” do ex-presidente. Ambos foram posteriormente devolvidos ao governo federal. A defesa de Bolsonaro afirma que ele “jamais se apropriou ou desviou quaisquer bens públicos”.
Após a publicação da história, a Polícia Federal iniciou uma investigação sobre um possível esquema de venda de presentes recebidos por Bolsonaro, executado por seus auxiliares.
Projeto Bruno e Dom (Brasil)
Não houve momento mais angustiante para o jornalismo brasileiro em 2022 do que a espera por notícias do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira. Foram dez dias entre a notícia do desaparecimento e a confirmação de que os dois haviam sido assassinados na terra indígena Vale do Javari, na Amazônia brasileira.
Para honrar o legado da dupla, o Projeto Bruno e Dom foi lançado na véspera de completar um ano dos crimes. Coordenada pelo Forbidden Stories, a iniciativa conta com mais de 50 jornalistas de dez países, incluindo nossos membros brasileiros Abraji e Repórter Brasil, e veículos como Amazônia Real, Folha de São Paulo, TV Globo e o português Expresso.
O consórcio investigou não apenas o contexto e as circunstâncias dos assassinatos, mas também os tópicos sobre os quais Dom havia publicado investigações anteriormente, como grilagem de terras, desmatamento, mineração e pesca ilegal. Destacamos a reportagem da Amazônia Real sobre a mineração de ouro, que não apenas aponta os danos ambientais e populacionais da atividade, mas também apresenta a questão da perspectiva dos garimpeiros, a quem Dom não via apenas como vilões, mas como “homens desesperados para sustentar uma família”.
Paredes frágeis em lugares de dor (Portugal)
Durante um ano, as jornalistas Ana Patrícia Silva, do Setenta e Quatro, e Cláudia Marques Santos, do Público, investigaram o flagelo dos abusos sexuais cometidos nos locais onde as mulheres em Portugal deveriam sentir-se mais seguras: hospitais e consultórios médicos.
Na série de cinco partes, a dupla contatou 47 mulheres, 14 das quais concordaram em partilhar publicamente as suas experiências, e falaram com dezenas de especialistas. Também consultaram processos e relatórios judiciais, viajaram pelo país e exploraram as implicações jurídicas e o estigma associado ao problema e à falta de preparo das instituições do país para lidar com situações como esta. As jornalistas tiveram de criar sua própria base de dados para o projeto, pois descobriram que não existem estatísticas no país que demonstrem quantos casos de abuso sexual foram registrados na saúde pública e privada.
A caixa-preta do Bolsonaro: As atas secretas do Comitê de Crise da Covid-19 (Brasil)
Graças ao apoio dos leitores, através de uma campanha de arrecadação de fundos, sete jornalistas conseguiram decifrar 806 páginas, e publicaram onze reportagens, sobre a “caixa-preta” de Bolsonaro e um conjunto secreto de atas registrando 233 reuniões de seu Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19.
Os documentos, obtidos por meio de pedidos de Lei de Acesso à Informação pela Agência Pública, membro da GIJN, revelaram, entre outras coisas, como o Ministério da Defesa esteve envolvido na produção de cloroquina (medicamento sem eficácia comprovada para o coronavírus), as estratégias do comitê para esconder o verdadeiro número de mortes por COVID-19 e a negligência do governo com a crise em Manaus, cidade no norte do Brasil que sofria com uma grave falta de cilindros de oxigênio.
A obsessão por colágeno ‘impulsiona o desmatamento e abusos de direitos’ (Brasil)
O desmatamento já foi previamente ligado a abertura de pastos para criação de gado para exportação de carne, mas esta reportagem colaborativa de O Joio e o Trigo, do Bureau of Investigative Journalism, do Guardian e do ITV revela outro lado, menos conhecido, desta questão ambiental: a produção de colágeno.
Parte fundamental dos suplementos para a saúde, o colágeno é uma proteína cujo processo de fabricação remonta a uma complexa cadeia de danos ambientais na Amazônia e no Cerrado brasileiro. Entre os envolvidos na divulgação dos benefícios do colágeno estão gigantes multinacionais e até estrelas de Hollywood. Entretanto, ao contrário da carne bovina, o colágeno não está incluído na nova legislação europeia que pretende combater o desmatamento ao impedir a importação de produtos cuja produção gere impactos ambientais.
O que a farmácia sabe sobre mim? (Brasil)
Nesta reportagem, o gigante de notícias brasileiro UOL revelou que um importante grupo farmacêutico armazenou até 15 anos de dados pessoais sobre a saúde de 48 milhões de pessoas no Brasil. Esses dados são usados para vender anúncios direcionados em farmácias, redes sociais e no YouTube, de acordo com o perfil do público que o anunciante deseja atingir.
A repórter usou seus próprios dados pessoais para demonstrar o grau de privacidade que as farmácias possuem, que inclui informações sobre doenças, medicamentos consumidos e até detalhes sobre a vida sexual de um indivíduo. Após a publicação do artigo, foi iniciada uma investigação governamental para avaliar a conformidade das práticas da empresa com as leis de proteção de dados e direitos do consumidor.
Pedofilia na Igreja Católica Brasileira (Brasil)
Embora países como os Estados Unidos e Portugal já tenham enfrentado escândalos públicos sobre abusos sexuais cometidos por padres católicos, pouco se sabe sobre a extensão de tais crimes no Brasil, a maior nação católica do mundo.
Lançado neste ano, o livro “Pedofilia na Igreja: um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil”, apresenta pela primeira vez um panorama dos casos de abuso sexual cometidos por clérigos contra crianças e adolescentes no Brasil, limitando-se, porém, aos casos que chegaram aos tribunais.
Para escrever a obra, dois jornalistas investigaram por mais de três anos e conversaram com dezenas de pessoas, incluindo vítimas e parentes, padres acusados ou condenados, membros da Igreja, autoridades e especialistas. O livro reúne 108 casos reais, detalhando cerca de 20 deles e mostra ainda os desdobramentos judiciais, o impacto na vida das vítimas e a impunidade da Igreja no País.
Onde vai parar o ouro extraído ilegalmente da Amazônia? (Brasil)
Em 2020, as autoridades apreenderam 35 kg de ouro no aeroporto de Manaus no valor de R$ 10 milhões. Os três homens — dois americanos e um brasileiro — que transportavam a bolada alegaram que o material era proveniente de reaproveitamento de joias derretidas — uma afirmação que levantou suspeitas, visto que essa quantidade de ouro se traduziria em cerca de 200 mil alianças de casamento e, como observaram os repórteres, “nem mesmo reunindo todos os brasileiros divorciados em 2022 seria o suficiente para fornecer tanta matéria-prima”. Especialistas citados na reportagem disseram que, na verdade, o ouro veio de garimpo ilegal, mais especificamente de terras indígenas na Amazônia.
Em parceria com a NBC News, nosso membro Repórter Brasil detalhou a rota desse minério ilícito e mostrou como o garimpo se aproveita da falta de fiscalização e regulamentação para atrair os olhares de estrangeiros. Segundo a reportagem, havia dois destinos para o carregamento: Nova York e Istambul. Este último destinado a uma empresa que fornece ouro a gigantes globais de tecnologia. E embora este carregamento tenha sido interrompido, a reportagem alerta que o contrabando de ouro da Amazônia continua a ser um negócio lucrativo.
Ana Beatriz Assam é editora de português da GIJN e uma jornalista brasileira. Trabalhou no jornal O Estado de São Paulo como freelancer, principalmente com dados na editoria de Política. Também atua na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) como coordenadora assistente de cursos de jornalismo..