Seleção da Editora: As melhores histórias investigativas em português de 2024
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O jornalismo, em especial o investigativo, nunca foi uma tarefa fácil. Porém, na era da desinformação, a crescente desconfiança pública do trabalho da imprensa – inflamada pela ascensão da extrema-direita ao redor do mundo – tem contribuído para a disseminação de ataques a jornalistas e meios de comunicação. Isso é especialmente verdadeiro em momentos em que as emoções estão mais acaloradas, como em eleições.
E 2024 foi um ano especialmente desafiador para jornalistas de língua portuguesa, com eleitores em três países de língua portuguesa, em três continentes — Portugal, Brasil e Moçambique — indo às urnas.
No Brasil, segundo a Coalizão em Defesa do Jornalismo, que monitorou as redes sociais durante as eleições municipais do país, “as análises revelam padrões de agressões que ameaçam o exercício do jornalismo no país e o papel fundamental da mídia como vigilante do poder público”. Apenas no X (antigo Twitter), foram 35.876 ataques. Fora do ambiente digital, o relatório registrou 11 casos de violência física ou verbal contra jornalistas.
Em Portugal, que celebrou este ano cinco décadas do fim da ditadura militar, a ascensão da extrema direita corre o risco de reabrir feridas. De acordo com a Repórteres Sem Fronteiras, embora Portugal tenha subido duas posições no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa e seja agora o 7º país mais bem classificado, jornalistas têm sido ameaçados ou atacados — física ou verbalmente — por pessoas ligadas ao partido de extrema-direita Chega, que ficou em terceiro lugar nas eleições deste ano.
Para a nossa Seleção da Editora de Língua Portuguesa deste ano, escolhemos peças que se destacaram – seja por seu formato inovativo, alcance e repercussão, ou pela relevância ao interesse público do tema abordado.
Brasil — Instituto brasileiro produziu veneno para ditadura chilena assassinar opositores
Em 2024, o Brasil completa 60 anos do golpe de Estado que instaurou a ditadura militar. Para marcar a data, a Agência Pública, membro da GIJN, publicou uma série de reportagens que “revelam como ainda há muito a ser investigado sobre os longos anos em que a aliança militar e civil tirou nossa democracia”. Em uma das reportagens, o veículo de comunicação detalhou como um dos mais renomados institutos científicos do Brasil – o Butantan – esteve envolvido na perseguição de cientistas considerados “comunistas”, e descobriu os fortes laços da organização com o Chile durante o governo do ditador Augusto Pinochet. Segundo a investigação, que durou seis meses, uma comitiva de altos oficiais ligados a Pinochet chegou a visitar a sede do Butantan e, em 2008, uma cientista encontrou caixas com ampolas de toxinas botulínicas provenientes do Instituto Butantan no porão do Instituto de Saúde Pública do Chile — o suficiente para “exterminar metade de Santiago”. A Agência Pública obteve documentos inéditos e depoimentos que indicam que as toxinas produzidas no Brasil teriam sido usadas para envenenar presos políticos contrários ao regime do ditador chileno – e que o renomado poeta e diplomata Pablo Neruda, ganhador do Prêmio Nobel da Literatura em 1971, pode ter sido uma das vítimas.
Brasil – Desmatamento em busca de dono
O desmatamento em um país como o Brasil, em que só a Amazônia cobre cerca de metade do território, é um problema grave. Mas como o governo pode combater um crime ambiental sem saber quem é o responsável? Esta reportagem da revista piauí investigou o problema e descobriu que, embora o governo tenha um mecanismo para impedir o desmatamento em áreas problemáticas por meio do “embargo” da zona, as regras têm eficácia limitada quando o culpado permanece desconhecido. De acordo com a reportagem, quase 1.400 áreas no Brasil foram embargadas por violações ambientais desde 2009 sem que o culpado tenha sido identificado pelo governo — custando ao estado milhões de dólares em receita perdidos.
As regras do embargo permitem que o governo coíba o abuso forçando os infratores a interromperem quaisquer atividades que causem desmatamento, exigindo que paguem multas e até mesmo limitando seu crédito bancário. Com o apoio do Centro de Análise de Crimes Climáticos (CCCA), a piauí cruzou milhares de registros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ou ICMBio, o órgão responsável pela gestão e proteção das unidades de conservação federais) com diferentes bases de dados fundiários, mapas de embargos e processos obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Os repórteres também rastrearam alguns dos proprietários de terras cujas identidades eram supostamente desconhecidas. Em resposta à investigação, o ICMBio se comprometeu a rever os casos.
Brasil — Exército gasta milhões todo ano com pensões para ‘mortos fictícios’
A Folha de São Paulo revelou que o Exército Brasileiro gasta mais de R$ 20 milhões por ano com o pagamento de pensões às famílias dos chamados “mortos fictícios” — militares expulsos da força por terem cometido crimes ou infrações graves. De acordo com a investigação, atualmente há 238 militares, incluindo 38 oficiais, neste grupo. Segundo a legislação brasileira, apesar de suas condenações, esses militares não perdem o direito à pensão militar. No entanto, como não podem receber esses pagamentos diretamente devido às suas circunstâncias, eles são classificados como “mortos” administrativamente, para permitir que suas pensões sejam pagas a familiares. Esta é a primeira vez que esses dados são tornados públicos. Eles foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e cedidos à Folha pela Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada em transparência pública e membro da GIJN. No ano passado, a agência já havia conseguido os dados das pensões dos “mortos fictícios” da Marinha e da Aeronáutica.
Portugal – A grande “família” do Chega
“Quem manda é o povo e não as elites que nos governam”: este é um dos mantras que tem servido ao partido português de extrema-direita Chega desde que foi formado em 2019. Mas, de acordo com esta investigação do Público, o partido viu o seu apoio aumentar em todas as camadas sociais, e até conta com membros da “elite” entre os seus apoiadores.
A reportagem é um retrato inédito de um partido que conseguiu o 3º maior número de assentos parlamentares nas eleições legislativas de 2024. Ela mostra como a direita radical populista tem atraído a simpatia de vários estratos da sociedade, apresentando as histórias de dezenas de doadores. O panorama é de um partido que está conseguindo atrair uma mistura diversificada: empresários relacionados ao ramo imobiliário ou ao de venda de armas e equipamento militar; membros da aristocracia portuguesa; e aqueles que simpatizam com o antigo ditador de Portugal, incluindo uma pessoa implicada em uma tentativa de golpe. No outro extremo do espectro estão pessoas que doaram algumas centenas de euros, como feirantes, lavadores de veículos e até mesmo imigrantes brasileiros ou pessoas com herança familiar de esquerda. Todos foram procurados pelo repórter e muitos deram suas versões do porquê se identificam com a causa do partido – a grande maioria citou o “combate ao socialismo” e o desejo por leis de imigração mais rígidas.
Brasil — Investigando como uma decisão judicial impactou bairros que estão ‘afundando’ em Maceió
Desde 2018, milhares de moradores tiveram que deixar suas casas em Maceió, capital do estado do nordeste brasileiro de Alagoas, à medida que partes da cidade começaram a afundar. O problema — que levou à evacuação completa de cinco bairros — é atribuído ao impacto de quatro décadas de mineração para extração de sal-gema, e ao consequente colapso das minas. Nesta reportagem, o The Intercept Brasil investiga como uma decisão judicial de 2019 favoreceu a mineradora, mesmo após a confirmação do afundamento dos bairros.
O veículo teve acesso à íntegra das decisões do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – que julgou o caso – e consultou um defensor público do caso, que sugeriu que os órgãos públicos “tiveram que ceder” a um acordo, já que um processo legal dessa magnitude poderia levar muitos anos e as famílias permaneceriam na área de risco. Apesar de terem sido definidas medidas para assistir as vítimas, segundo a reportagem, o acordo não reconheceu a responsabilidade da empresa pelo desastre ambiental, e ainda concedeu à mineradora a posse dos imóveis dos moradores indenizados.
Brasil — Porto Alegre não investiu na prevenção de enchentes em 2023
No estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, o mês de maio registrou fortes chuvas que causaram inundações generalizadas e deixaram centenas de cidades submersas — dos 497 municípios do estado, 467 foram afetados, segundo autoridades. Foram 183 mortos, 27 desaparecidos, e mais de 500 mil pessoas desabrigadas. O maior aeroporto da região, na capital do estado, Porto Alegre, só voltou a funcionar plenamente meses depois, em dezembro.
O Rio Grande do Sul não é estranho às inundações, mas, segundo esta investigação do portal de notícias UOL, em 2023, a prefeitura de Porto Alegre não investiu nada na prevenção de enchentes. Segundo a reportagem, o orçamento da cidade tem um item chamado “Melhoria no sistema contra cheias”, que teve quedas acentuadas no investimento nos últimos dois anos, antes de chegar a zero, por mais que a divisão de água e esgoto tenha reservas significativas à sua disposição. Os dados – retirados do Portal da Transparência da cidade – também revelaram que o quadro de servidores do departamento foi reduzido quase pela metade desde 2013. Procurada pela reportagem, autoridades da cidade não negaram que as melhorias na prevenção de inundações foram deixadas de fora do orçamento de 2023, mas afirmaram que houveram gastos em prevenção às cheias feitos em outras áreas, como mapeamento de áreas de risco; reforma de casas de bombas e compra de botes.
Brasil — A evolução das milícias rurais no sudeste do Pará
Um time da Repórter Brasil, membro da GIJN, percorreu mais de 6.000 quilômetros para investigar a conexão entre retomadas de terras violentas e o “bolsonarismo” — o movimento de direita que gira em torno do controverso ex-presidente do país. A reportagem especial resultante conta com entrevistas e análises de milhares de documentos, além de uma viagem pelos estados do Pará e do Mato Grosso. Em uma das reportagens, a equipe explica como, no sul e sudeste do Pará, assentados vivem com medo de ações de despejo ilegais feitas por latifundiários e apoiadas por milícias fortemente armadas. De acordo com a Repórter Brasil, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro facilitou o porte e a posse de armas – com um crescimento de 212% no registro de armas de fogo entre 2017 e 2022 apenas no Pará. Junto com seus auxiliares e apoiadores, ele também “incentivou a violência rural” e criticou abertamente os movimentos sem terra, os repórteres afirmam. Por mais que Bolsonaro tenha sido derrotado nas eleições de 2022, a prática de contratar pistoleiros e formar milícias para retirar as famílias permanece, de acordo com esta reportagem. Mas uma coisa mudou: o modus operandi violento. Se antes as lideranças dos trabalhadores rurais sem terra eram mortas, agora, a estratégia é destruir tudo, mas sem mortes, para não deixar mártires.
Brasil — 61 candidatos disputam eleição com mandados de prisão em aberto
Neste ano, foram realizadas eleições para prefeitos e vereadores em milhares de municípios do Brasil. Mas, depois que um leitor atento denunciou que um candidato estava foragido por uma acusação de estupro de vulnerável, duas jornalistas do portal de notícias g1 decidiram investigar se havia outros candidatos com situações semelhantes. Elas cruzaram dados nacionais de mais de 300 mil mandados de prisão com as informações de mais de 460 mil registros de candidatura – e descobriram que 61 pessoas concorrendo a cargos públicos tinham mandados de prisão em aberto. A maioria dos casos eram por dívidas relacionadas a não pagamento de pensão alimentícia, mas havia também alegações de delitos mais graves como roubo, furto, estelionato e, até mesmo, homicídio. As repórteres contaram com a ajuda de outros jornalistas do g1, que tem equipes locais espalhadas pelo país, para encontrar e ouvir todos os candidatos e seus partidos. A legislação brasileira não barra a candidatura de pessoas que tenham mandados de prisão abertos, apenas daquelas que tenham sido condenadas em definitivo. Entretanto, os candidatos ainda podiam ser presos durante a campanha. Em um sinal notável de impacto, de acordo com a Polícia Federal, 36 dos candidatos foragidos foram rapidamente presos.
Ana Beatriz Assam é editora de português da GIJN e curadora da nossa coluna quinzenal Top 10 do Jornalismo de Dados. Jornalista brasileira, ela trabalhou como repórter freelancer para o jornal O Estado de São Paulo, cobrindo principalmente histórias com jornalismo de dados. Ela também trabalhou para a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) como coordenadora assistente de cursos de jornalismo.