Ilustração: Dante Aguilera para GIJN
Depois de Pablo e El Chapo: como os meios de investigação estão cobrindo o crime organizado na América Latina
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Gangues do crime organizado sitiaram a cidade portuária equatoriana de Guayaquil em janeiro, quando homens mascarados, armados com submetralhadoras e granadas, atacaram um hospital, empresas locais e invadiram um estúdio de televisão para fazer jornalistas como reféns durante uma transmissão ao vivo. O cerco foi sem precedentes e marcou a forma como a nação sul-americana, anteriormente conhecida como um destino turístico pacífico, foi arrastada para a batalha contra cartéis e gangues do tráfico de drogas.
A situação no Equador é parte de uma crise mais ampla de violência na América Latina. O processo de paz da Colômbia, em 2016, viu grupos dissidentes assumirem o controle do território antes governado pelas FARC, gangues de prisão como El Tren de Aragua são agora enormes sindicatos multinacionais do crime, o governo do Haiti recentemente colapsou para gangues que se agem livremente em Porto Príncipe, e áreas que costumavam ser praticamente inacessíveis, como a floresta Amazônica e a região de Darién, que liga a Colômbia ao Panamá, são agora paraísos para o tráfico de seres humanos, o tráfico de drogas e a exploração madeireira e mineira ilegais.
De acordo com o Estudo Global sobre Homicídios de 2023 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, a região da América Latina e do Caribe “não só tem consistentemente a maior taxa de homicídios de qualquer sub-região, mas também teve a maior proporção de homicídios envolvendo crime organizado em todo o mundo”.
O estudo aponta três razões principais por trás disso: produção e tráfico de drogas recordes, proliferação e fragmentação de grupos fortemente armados e fraco controle de armas e aplicação da lei. Um estudo diferente, do International Crisis Group, concluiu que cerca de um terço de todos os assassinatos no mundo ocorrem na América Latina.
Mas à medida que o crime organizado na região se multiplica, o jornalismo investigativo está à altura do desafio. Desde redações que usam formas inovadoras para cobrir a ameaça em constante mudança representada pelo crime organizado até a raspagem colaborativa de dados divulgados por hacktivistas, e desde a criação de videogames para explorar a corrupção até a investigação de como o comércio de drogas impacta os membros mais jovens dessas sociedades, os jornalistas que cobrem essa área estão se mostrando criativos e ágeis.
A GIJN conversou com repórteres de veículos sediados na Colômbia, Honduras e México, bem como de dois projetos regionais, para saber como eles realizaram seu trabalho recente, onde estão inovando nessa área e como eles estão mudando a narrativa sobre o crime organizado, do foco nos chefões para investigações sobre o impacto do crime organizado nas pessoas comuns.
NarcoFiles: Revelando ‘Impérios Criminosos’
Em um café de Bogotá, o jornalista investigativo Lorenzo Morales escreveu algumas palavras num guardanapo e entregou-o a Nathan Jaccard, editor para a América Latina do Projeto de Jornalismo sobre Corrupção e Crime Organizado (OCCRP). A mensagem referia-se a um vazamento inédito de e-mails da Procuradoria-Geral da Colômbia.
O grupo hacktivista que guardava os e-mails – Guacamaya Leaks – estava aceitando pedidos da imprensa para acessar mais de cinco terabytes de dados.
“Guacamaya aproveitou-se de uma vulnerabilidade no gabinete do Procurador-Geral”, explicou Jaccard, referindo-se a um patch de segurança que as autoridades não baixaram, embora a Microsoft tenha os alertado para fazê-lo. “Embora vários meios de comunicação colombianos tivessem acesso aos vazamentos de forma independente, procuramos construir um esforço colaborativo porque não queríamos repetir o erro da mídia no México, que competiu entre si ao analisar um conjunto semelhante de vazamentos”.
Essa abordagem transformou um vazamento que poderia ter tido importância apenas na Colômbia, no que o OCCRP chamou de “o maior projeto investigativo sobre o crime organizado originado na América Latina”.
Quarenta e quatro meios de comunicação colaboraram nos vazamentos do NarcoFiles para publicar mais de 70 histórias. Entre as revelações, o grupo descobriu: novas rotas de cocaína para os EUA e a Europa, como hackers se infiltram nos sistemas das cidades portuárias europeias para permitir o contrabando de drogas, alianças entre sindicatos latino-americanos e europeus e como o Dubai se tornou um paraíso para os grandes traficantes.
A equipe também contactou meios de comunicação social dos EUA e da Europa, como o Miami Herald e a ZDF, e incluiu-os na raspagem de milhões de e-mails para desvendar uma rede criminosa mundial que contrabandeia até barbatanas de tubarão ilegais para Hong Kong.
Jaccard destacou que, durante a investigação do NarcoFiles, notou uma diferença interessante entre jornalistas europeus e latino-americanos. A experiência dos primeiros tende a centrar-se em crimes financeiros, enquanto os últimos têm mais experiência em lidar com reportagens sobre o crime organizado. Para o bem ou para o mal, a presença generalizada do crime organizado na América Latina significa que os jornalistas estão bem familiarizados com a sua cobertura, disse ele.
A plataforma Aleph do OCCRP, que possibilita análise e coleta de dados e pesquisas de documentação, além de cruzá-los com outros bancos de dados, foi essencial para dar sentido aos e-mails.
“Uma ferramenta desse tipo funciona como o navegador Google, no sentido de que permite pesquisas mais estruturadas por meio de palavras-chave, datas e endereços de e-mail”, explicou Jaccard. “Isso torna muito mais fácil navegar pelos dados e realmente entender que tipo de projeto poderia surgir dos e-mails, porque a princípio não sabíamos se seria centrado em corrupção, no crime organizado, em crimes ambientais ou em práticas comerciais duvidosas”.
Jogos, dados e inovação digital na Cuestión Pública, da Colômbia
Um aliado chave no projeto NarcoFiles foi a plataforma de jornalismo investigativo Cuestión Pública, fundada em 2018 por Claudia Báez, Diana Salinas e David Tarazona.
Quando grandes organizações de comunicação social na Colômbia começaram a cortar gastos ou a encerrar as suas equipes de investigação para economizar dinheiro, os fundadores da Cuestión Pública viram uma oportunidade, especialmente no espaço online.
Hoje, o veículo aposta na combinação de dados rigorosos e aprofundados com métodos investigativos, ao mesmo tempo que elabora histórias para atrair um público amplo, especialmente as gerações mais jovens. Apesar dos recursos bastante limitados, a Cuestión Pública produz histórias sobre o crime organizado e as suas ligações com a política colombiana, através da criação de plataformas de gamificação de última geração e ferramentas alimentadas por IA.
Através de uma plataforma interativa chamada “We Know What You Did Last Legislature” (Sabemos o que vocês fizeram na última legislatura), a equipe abordou a corrupção no Congresso, enquanto os supostos laços entre candidatos políticos regionais e o crime organizado foram interrogados através de um jogo online chamado “Desencanto”, uma paródia do filme “Encanto” da Disney.
“’Desencanto’ é a nossa aposta mais forte para descobrir como o crime organizado influencia a política local”, disse Báez, sobre o jogo concebido para revelar o lado negro das eleições locais de 2023 na Colômbia.
“Usamos o Microsoft Power BI para potencializar esta plataforma de gamificação. Embora esta ferramenta tenha sido originalmente construída para business intelligence, visualização e dashboards, descobrimos que ela pode ser usada para projetar jogos”, explicou Edier Buitrago, editor de dados da Cuestión Pública. Esta improvisação digital proporcionou ao público uma forma envolvente de descobrir quais candidatos tinham sido investigados por possíveis ligações com grupos paramilitares e organizações de tráfico de droga, utilizando como fonte informações judiciais oficiais.
Seguindo um tema semelhante, a equipe também criou o Projeto ODIN (Optimized Data Integration Network), uma poderosa ferramenta de inovação que rendeu à Cuestión Pública uma menção honrosa no Desafio de Jornalismo de Inteligência Artificial de 2023.
“ODIN usa IA para otimizar a escrita de threads do Twitter/X e dar melhor contexto sobre as figuras públicas que a qualquer momento atraem a atenção da mídia e que investigamos, e é alimentado pelos bancos de dados semiestruturados da Cuestión Pública, do ‘Game of Votes‘ e ‘We Know What You Did Last Legislature‘”, disse Báez. Os usuários também podem usar o ODIN para fazer perguntas sobre figuras públicas apresentadas nas manchetes de notícias e descobrir se, entre outras informações básicas, eles foram acusados de ter ligações com entidades do crime organizado.
Inovar permite atingir públicos mais jovens, disse Báez. “Sabemos que quando as pessoas completam 35 anos é muito difícil mudar as suas opiniões políticas, mas os jovens estão construindo as suas opiniões sobre o panorama político, por isso, se tiverem esta informação, poderão tomar decisões informadas. Em última análise, é isso que fazemos: fornecer informações para que os cidadãos tomem melhores decisões políticas”.
ContraCorriente, de Honduras: análise detalhada de como os traficantes controlam as comunidades
Um traço comum nas recentes reportagens latino-americanas sobre o crime organizado é a mudança de um foco nos chefões e nas hierarquias dos cartéis para reportagens sobre os impactos sociais e culturais mais amplos onde o comércio de drogas se estabelece.
Desde sua criação, o ContraCorriente, de Honduras, decidiu analisar como o crime organizado altera a estrutura da sociedade e como as comunidades e os ambientes são transformados pela ilegalidade.
“Quando decidimos lançar o ContraCorriente em 2017, buscamos a opinião de vários meios de comunicação sobre a criação de uma plataforma de jornalismo investigativo e todos responderam que era impossível”, disse a cofundadora Jennifer Ávila. “Nosso maior desafio foi transformar esse sonho em um empreendimento. Descobrimos que os desafios que enfrentávamos não eram apenas em fazer jornalismo investigativo, mas também construir uma startup”, acrescentou.
Seu reconhecimento, em termos de reputação, veio com a investigação Transnacionais de Fé, que ganhou o Prêmio Ortega y Gasset de Jornalismo em 2020. Como parte da investigação – uma colaboração pan-latino-americana entre várias redações – o ContraCorriente revelou a disseminação de organizações cristãs fundamentalistas em Honduras.
Em A montanha sagrada dos grandes traficantes, Célia Pousset, do ContraCorriente, descreve o impacto das drogas e da mineração ilegal sobre os agricultores coagidos a cooperar, alegadamente com a cumplicidade das autoridades locais, no montanhoso município de Choloma.
“Muito pouco foi dito no jornalismo hondurenho sobre o impacto que o crime organizado tem nas comunidades”, observou Ávila. “A reportagem fala sobre todos os danos causados pelo tráfico de drogas, impunidade e corrupção institucional nas comunidades vitimadas e nas áreas protegidas”.
Através de sua plataforma baseada na web, vídeos do TikTok e contas nas redes sociais, o ContraCorriente permite que os leitores revisem o histórico dos candidatos às eleições parlamentares e compreendam a profundidade da influência do crime organizado no Estado.
Uma de suas fontes é uma coleção de mais de 500 documentos legais que detalham os casos de hondurenhos que enfrentam processos judiciais nos Estados Unidos por acusações de tráfico de drogas. Entre os nomes? Até mesmo alguns tão proeminentes como o ex-presidente Juan Orlando Hernández, que foi acusado num tribunal dos EUA de governar o país como um “narcoestado”. Se o ContraCorriente não disponibilizasse esses documentos gratuitamente, o público teria que pagar uma taxa à plataforma US PACER para acessá-los.
“Acho que as dificuldades que nós, latino-americanos, vivemos [como vítimas do crime organizado] nos tornaram mais resilientes, e isso nos faz acreditar que podemos superar os desafios contando essas histórias”, disse Ávila. “Esta é a fórmula que seguimos e por isso somos tão persistentes”.
O toque hiperlocal do POPLab nas reportagens sobre crime organizado no México
Anos atrás, Guanajuato, capital de um estado de mesmo nome no centro do México, raramente aparecia na cobertura da mídia sobre o crime organizado. Mesmo quando a taxa de homicídios começou a aumentar, a cobertura nacional estava focada em outras regiões, especialmente nas cidades fronteiriças entre os EUA e o México, deixando os jornalistas em Guanajuato com dificuldades para compreender a violência na sua área.
Fundado pelo experiente jornalista Arnoldo Cuéllar, que já havia trabalhado no Correo de Guanajuato e no El Nacional de Guanajuato, o POPLab surgiu como resultado da falta de interesse das principais redações em apoiar o jornalismo investigativo centrado no Estado.
Após uma incursão inicial na cobertura de eleições locais, a equipe decidiu concentrar-se em investigações de longo prazo e procurar novos ângulos para os principais problemas enfrentados por Guanajuato, principalmente a dramática propagação da violência ligada ao crime organizado. No topo da lista estava considerar como as vítimas do crime organizado são apresentadas – e a investigação de histórias que outros meios de comunicação deixaram passar.
Uma vez que a queda de Guanajuato nas garras do crime organizado coincidiu com a ascensão do procurador-geral local Carlos Zamarripa, para um dos seus primeiros projetos a equipe decidiu fazer uma investigação aprofundada no período de Zamarripa no cargo.
Entre 2009 e 2020, primeira década em que ele esteve no poder, os assassinatos em Guanajuato aumentaram de pouco menos de 500 para 4.490 por ano. Em 2019, enormes protestos varreram o estado, com 10 mil pessoas exigindo que Zamarripa investigasse os assassinatos de estudantes universitários e pôr fim ao ciclo de violência que envolvia a região.
Zamarripa – um dos procuradores-chefes com mais tempo de serviço do México – foi convidado pelo governo federal a renunciar, devido ao aumento significativo de homicídios ocorridos sob seu comando e ao baixo número de condenações durante seu mandato, mas as autoridades locais responsáveis por efetuar uma mudança falharam.
O POPLab escreveu o perfil mais detalhado de Zamarripa até o momento: “Decidimos nos concentrar em narrar sua ascensão ao poder, a evolução do crime organizado em Guanajuato e sua relação com os embaixadores dos EUA”, disse Cuéllar. Depois que sua história foi publicada, veículos de todo o país também começaram a prestar atenção em Zamarripa.
Um projeto posterior, “Não são danos colaterais, é nosso futuro em jogo“, é um exemplo do jornalismo centrado nas vítimas do POPLab. A reportagem investiga a forma como o crime organizado afeta os jovens, desde o recrutamento para uma carreira de violência até a luta para viver livre dela. “Encontramos experiências individuais de como este fenômeno está se desenvolvendo e as comparamos com os dados existentes”, explicou Cuéllar. Entre os dados utilizados pelo POPLab estavam números sobre a quantidade de menores presos, homicídios de menores e locais onde os crimes ocorreram.
Criando novas narrativas sobre o crime organizado
Uma das maiores organizações criminosas da América Latina veio das prisões da Venezuela. Graças à corrupção generalizada, à falta de supervisão dos prisioneiros e à infiltração de tecnologia e ferramentas de comunicação ilegais nas prisões, El Tren de Aragua deixou de ser uma temida gangue de prisão para se tornar um sindicato criminoso multinacional que opera em todo o continente, do Chile e Argentina à América Central.
A repórter investigativa venezuelana Ronna Rísquez passou anos documentando a crescente influência do grupo. Ela escreveu o relato definitivo da história e das operações atuais do El Tren de Aragua, e foi coautora de investigações premiadas como OLP: A Máscara do Terror Oficial na Venezuela, que foi finalista do Prêmio Global Shining Light da GIJN em 2019.
Mas em 2023 ela percebeu que queria mudar sua abordagem. Rísquez criou o In.Visibles, uma plataforma online de jornalismo investigativo para fornecer novas narrativas sobre o crime organizado, juntamente com a jornalista investigativa argentina Josefina Salomón e o repórter gráfico e documentarista Sergio Ortiz.
“Quando falamos de novas narrativas, queremos dizer tentar combater o crime organizado sem orbitar em torno dos grandes narcotraficantes, como Pablo Escobar e Chapo Guzmán”, explica Rísquez.
O projeto ainda está em fase de implementação, com as primeiras investigações previstas para serem publicadas ainda este ano. A equipe planeja colocar no centro do palco as histórias de pessoas antes consideradas à margem das reportagens sobre o crime organizado. Por exemplo, narrativas sobre as “mulas” de drogas que possibilitam as operações, mas que se envolvem no comércio devido a dificuldades econômicas e são coagidas. “Eles estão realmente cometendo um crime ou são vítimas de tráfico humano?” pergunta Risquez. Essas vítimas invisíveis são as pessoas e as histórias que deram nome à plataforma: In.Visibles.
“Embora possa parecer mais fácil atrair a atenção do público com reportagens duras sobre o crime organizado, escrever sobre as vítimas é uma escolha… um compromisso social e parte da abordagem do jornalismo como um serviço público”, acredita Rísquez.
Santiago Villa é um jornalista premiado que escreve para meios de comunicação latino-americanos há mais de uma década. Atualmente mora na Colômbia e escreve uma coluna de opinião para o El Espectador. Anteriormente trabalhou como correspondente estrangeiro na África do Sul, China, Venezuela e Equador.